domingo, 12 de outubro de 2008

Artigo: JOSÉ FLÁVIO MOTTA

OS ESCRAVOS E O PERÍODO JOANINO NO BRASIL


A vinda da família real portuguesa para a colônia brasileira e a instalação da Corte no Rio de Janeiro, em 1808, foram eventos de inegável relevância no delineamento dos caminhos trilhados por nossa história. Assim, por exemplo, ainda que a Independência do Brasil possa ser entendida como conseqüência inevitável da crise do antigo sistema colonial, decerto os efeitos da estada de Dom João no Rio foram condicionantes importantes da forma pela qual nos tornamos independentes de Portugal e, nessa medida, ajudaram a conformar o regime monárquico chefiado por Dom Pedro I.

Como avaliar esses efeitos no que respeita especificamente à população escrava da colônia? Para avançarmos uma resposta a essa questão voltemos, de início, nossa atenção para os números do tráfico negreiro. Nossa fonte são os dados presentes em relatórios do Foreign Office, publicados por David Eltis e reproduzidos por Herbert Klein no capítulo sobre o tráfico de escravos que compõe o volume 3 das Estatísticas Históricas do Brasil, obra editada pelo IBGE. Nos qüinqüênios de 1796-1800 e de 1801-1805, as estimativas de desembarque de africanos no Brasil igualaram-se, respectivamente, a 108.700 e 117.900 cativos. Portanto, uma variação positiva de 8,5% entre os dois intervalos referidos. No qüinqüênio seguinte, 1806-1810 ¾durante o qual teve lugar a transferência da Corte Portuguesa¾, desembarcaram na colônia 123.500 africanos (acréscimo de 4,8% sobre os cinco anos anteriores). Nos dois qüinqüênios subseqüentes, o número de escravos desembarcados cresceu continuamente: 139.400 (1811-1815) e 188.300 (1816-1820). As correspondentes variações porcentuais, calculadas em cada caso sobre o período imediatamente anterior, atingiram os valores de 12,9% e 35,1%. Tais cifras cresceriam ainda mais após a Independência, ultrapassando a casa de 250.000 cativos desembarcados em 1826-1830 e em 1846-1850, ao que se seguiu a promulgação da Lei Euzébio de Queiroz, em 1850, extinguindo o tráfico de escravos para o Brasil. Em suma, se é certo que o ritmo do tráfico negreiro já vinha se acentuando previamente a 1808, não é menos certo que esse crescimento continuou e se acelerou no período joanino. Não obstante, convém salientarmos que, à época da vinda da família real, Inglaterra e Estados Unidos extinguiram seus respectivos comércios transatlânticos de cativos; a saída do mercado desses países escravistas sem dúvida contribuiu para o direcionamento de uma oferta ampliada daquela mercadoria humana para a colônia brasileira.


Num segundo passo de nossa resposta à questão acima formulada, devemos voltar os olhos para as atividades econômicas da colônia que demandavam aqueles escravos, e ao eventual impacto da transferência da Corte sobre tais atividades. Também aqui é possível identificar um movimento que antecede o marco de 1808. Assim, um conjunto de eventos vinculados à crise do antigo sistema colonial, na medida em que desorganizou, em vários dos principais produtores, a produção de gêneros tais como açúcar, algodão, arroz, café etc., criou uma situação favorável para a colocação da produção exportável brasileira. Entre tais eventos destacaram-se a guerra de independência dos EUA, a revolução haitiana e os movimentos de independência das colônias espanholas na América. Aquelas circunstâncias favoráveis conduziram ao que Caio Prado Júnior denominou “renascimento da agricultura” (cf. História econômica do Brasil, cap. 10). Em boa medida, tais circunstâncias mostraram-se efêmeras; Celso Furtado, por exemplo, ressaltou esta característica quando se referiu à “falsa euforia do fim da época colonial” (cf. Formação econômica do Brasil, cap. 16).

Mas o renascimento agrícola não se reduziu a essa falsa euforia. Por um lado, mesmo no elenco dos gêneros exportáveis, não há como negligenciar o surto cafeeiro do período joanino, ainda que o ritmo de expansão da cafeicultura naqueles anos fosse muito menos intenso do que se verificaria posteriormente, em especial na segunda metade do século XIX. Por outro lado, temos de considerar a produção voltada para o mercado interno. E aqui, na produção e comercialização de gêneros de abastecimento, talvez se mostre mais aparente o impacto da transferência da Corte. Este ponto é ilustrado, por exemplo, em trabalho derivado da dissertação de mestrado de Alcir Lenharo (As tropas da moderação). Nele, o autor estudou o abastecimento da Corte no período de 1808 a 1842. Mais especificamente, seu objeto é o abastecimento via rotas terrestres ligando o Rio de Janeiro às capitanias de Minas Gerais e de São Paulo e, mais além, às regiões produtoras de Goiás e Mato Grosso; nesse conjunto, o Sul de Minas assumia a posição de principal centro abastecedor. Embora, é claro, a produção para o mercado interno não tenha decorrido da instalação da Corte no Rio, Lenharo sugere que a dita transferência dinamizou o comércio de abastecimento: “após 1808, o movimento mercantil de gêneros de primeira necessidade voltado para mercado interno solidificou-se.” (op. cit., p. 41) Não por acaso, Minas Gerais manter-se-ia, durante boa parte do Oitocentos, como capitania/província onde se concentrava um contingente de escravos superior ao de qualquer uma das demais capitanias/províncias brasileiras.

Há, portanto, uma nítida intensificação no ritmo de desembarques de cativos africanos no Brasil na primeira metade do século XIX. É possível que parte das aquisições fosse estimulada pela saída do mercado transatlântico de escravos de outras nações escravistas. É também possível que as pressões sofridas pelo Brasil, naquele período, para pôr fim ao tráfico negreiro para cá direcionado, tenha estimulado um movimento de compras em certa medida descolado das necessidades imediatas da produção. No entanto, pelo exposto nos dois parágrafos anteriores, essas aquisições, ao menos em parte, destinavam-se a uma produção econômica marcada por relativo dinamismo, seja de produtos da agroexportação (caso do café), seja de gêneros direcionados para o mercado interno. Em um e noutro caso, é difícil negar um papel de estímulo àquele dinamismo e, por essa via, àquela intensificação do comércio negreiro, desempenhado pela presença da Corte portuguesa no Rio de Janeiro.


_______________________________________________________________

JOSÉ FLÁVIO MOTTA é Professor Doutor do departamento de Economia da FEA-USP, com ênfase em História Econômica. Pesquisador da Escravidão no Brasil, escreveu esse artigo a O ARAUTO em Abril, tendo a comemoração dos 200 anos da vinda da Corte para o Brasil como ocasião.

Nenhum comentário: