quarta-feira, 12 de março de 2008

Pede pra sair, Cervantes!

Cópias, roubos, trapaças e a eterna novela dos direitos autorais no Brasil e no mundo

por JULIO LUCCHESI MORAIS
ECONOMIA. 4 ANO

Pode até parecer coisa de novela e realmente foi: há quase quatrocentos anos, em 1615, o escritor espanhol Miguel de Cervantes se viu na obrigação de acelerar a publicação da segunda parte do romance Dom Quixote, cuja primeira parte fora publicada dez anos antes. Aquele curioso lançamento antecipado não surgira de nenhuma campanha de marketing, estratégia comercial ou qualquer outra idéia mirabolante à la Harry Potter. O motivo, aliás, era bem diferente: no ano anterior, começara a circular pelas ruas de Madrid uma versão pirata do livro. Era um tal Alonso Fernández de Avellaneda quem assinava a pretensa continuação da saga de Dom Quixote e Sancho Pança, valendo-se das idéias de Cervantes que, já naquela época, era um escritor de fama e sucesso. O enredo dessa novela espanhola não estaria completo não fosse a presença de Félix Lope de Vega, escritor arquiinimigo de Cervantes que, enciumado pela fama do rival, teria contratado Avellaneda para fazer o "trabalho sujo". Inaugurava-se, dessa maneira, uma das primeiras disputas sobre direitos autorais de que se tem notícia.

Inimizades à parte, na mesma época outro grande gênio da literatura universal parece ter se valido (por vezes de maneira bastante "livre") das idéias de seus antecessores e contemporâneos. Esse escritor era ninguém menos que William Shakespeare e suas vítimas favoritas seriam os também ingleses Robert Greene, Christopher Marlowe, além de Thomas Lodge e George Peele, embora a pesquisadora norte-americana Diana Price, em biografia do escritor recentemente publicada, tenha identificado relações literárias do dramaturgo com mais de 25 autores de seu tempo. Outro crítico literário, o inglês Edmund Malone, deu-se ao trabalho de contar um a um os 6.043 versos do bardo chegando a uma conclusão estarrecedora: 1.771 versos haviam sido copiados de obras anteriores, 2.373 haviam sido "reformulados" e apenas 1.899 pertenciam integralmente a Shakespeare.

Algum tempo depois, o feitiço se virava contra o feiticeiro: ano após ano, seus descendentes viram as peças de William serem criminalmente alteradas e mutiladas por editores, diretores e companhias teatrais. Quase meio século após a morte de Shakespeare, herdeiros e editores ainda se digladiavam pelos direitos e pela autenticidade de inúmeras obras.

Essa novela dos direitos autorais sobre peças de teatro, aliás, não pára por aí. Pelo menos até o começo do século XX não havia proteção alguma à produção literária internacional. Com o aumento da imigração mundo afora, obras de muitos escritores circulavam pelo globo com maior rapidez que as próprias pessoas. Embora as primeiras diretrizes por uma legislação universal de proteção de direitos autorais tivessem sido esboçadas já em 1886, a realidade era outra.

Fato interessante foram os conflitos envolvendo dramaturgos, comediógrafos e empresários teatrais brasileiros no final da década de 1910. Em linhas gerais, os escritores exigiam melhor remuneração por seu trabalho, reivindicação semelhante ao que, por exemplo, os roteiristas de Hollywood fizeram recentemente junto às grandes produtoras norte-americanas. No caso dos nossos escritores, a crítica era que suas peças, ao serem traduzidas para o espanhol ou para o italiano, tornavam-se isentas de quaisquer compromissos para com seus autores.

Já naquela época, contudo, começavam a surgir as primeiras discussões sobre um revolucionário suporte cultural que daria muito o que falar: o filme cinematográfico. O cinema e também os novíssimos produtos fonográficos criavam uma nova lógica ao mercado cultural: bem ou mal, a pirataria ou o plágio até então eram restringidos pela própria reprodutibilidade técnica dos bens. Ainda que partisse de uma idéia roubada, um plagiador de uma peça, por exemplo, precisava empenhar certo esforço, alterar trechos, transcrever, traduzir etc. Com o advento das novas tecnologias de reprodução de bens culturais em escala seriada, esse trabalho se tornava muito mais fácil. Bastava possuir a cópia de um rolo de filme ou de uma gravação fonográfica que servisse de matriz para as demais e estavam abertas as portas de um paraíso de lucros e vendas milionárias.

Não é à toa que, já nos anos 1920, o mercado mundial de distribuição cinematográfica tenha se tornado tão controlado pelas grandes companhias. Em seu livro sobre as salas de cinema de São Paulo, Inimá Simões conta que as grandes produtoras de Hollywood, como a Metro, a Paramount ou a United Artists guardavam a sete chaves cada um dos rolos que vinham ao solo tupiniquim nas décadas de 1940 e 1950, a "época de ouro" do cinema americano. A idéia era que apenas as salas conveniadas pudessem exibir os filmes. O consumidor desses lançamentos pagava, obviamente, quantia superior pelo ingresso das chamadas "salas lançadoras", quase todas localizadas no centro das grandes cidades, como o Cine Metro em São Paulo ou ainda as salas da Cinelândia, no Rio de Janeiro.

A passagem dos registros visuais e sonoros para as novas mídias compactas como os CDs e os DVDs tornou a circulação dos bens ainda mais ampla, acessível e vulnerável à distribuição paralela: cópias de baixa qualidade, gravações pirateadas e a utilização de mídias de pouca durabilidade e fácil reprodução, induziram a reduções dramáticas dos custos de produção, trazendo questionamentos sobre os sentidos legal e econômico dos direitos autorais nos primeiros anos do século XXI. Também os recentes avanços no campo de divulgação on-line têm feito escritores, músicos e artistas se questionarem até que ponto suas obras estão protegidas contra plágios, furtos e cópias.

De qualquer maneira, dados de diversas agências indicam o tamanho do poder de fogo da pirataria: a IFPI (Federação Internacional da Indústria Fonográfica), por exemplo, calcula que de cada três discos musicais vendidos no mundo um seja pirata. Trata-se de um mercado paralelo que alcançou o valor de US$ 4,6 bilhões no ano de 2004, quando foram vendidos 1,2 bilhões de discos piratas em todo o mundo. O Brasil está entre os países recordistas nos dados: de acordo com pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), detemos 9,5% do mercado mundial de discos musicais piratas. Recentes pesquisas do IBGE também indicam que o maior acesso dos brasileiros aos aparelhos de DVDs está fazendo com que o mercado de filmes piratas aumente num nível superior ao de CDs, pelo menos no biênio 2002-2003.

Bom exemplo é o vazamento de quase 1 milhão de cópias do filme vencedor do Urso do Ouro de Berlim Tropa de Elite em DVD pirata antes da própria estréia oficial no cinema provocou grande repercussão no cenário autoral brasileiro. À maneira da segunda parte do Dom Quixote, diretor e produtora apostaram em acelerar o lançamento do filme, tentando assim evitar as perdas e vinculando na versão "oficial" alguns detalhes diferentes da cópia pirata. Quem viu no cinema, gostou, e tem muita gente que assistiu o DVD e falou que irá ao cinema para "prestigiar" a interpretação de Wagner Moura e seus colegas do BOPE.

A discussão, contudo, ainda engatinha: de acordo com a ADPF (Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal) a pirataria de CDs e DVDs supera quaisquer diferenças regionais e sociais, alcançando todos os estratos da sociedade, isto é: a moda dos discos copiados está presente tanto nas famílias de baixa renda quanto entre os ricos. Pode ser, realmente, que a questão dos direitos autorais no século XXI realmente esteja superada, os lucros extraordinários de gravadoras e grandes produtora estariam com seus dias contados e já seria impossível controlar o frenético mercado de produtos falsificados. Por outro lado, as empresas se defendem usando o argumento de que os maiores prejudicados pela pirataria seriam os próprios artistas. Defensores e opositores da pirataria precisam, contudo, concordar num ponto fundamental: o mundo não seria o mesmo se só tivéssemos ficado com aquela cópia pirata da segunda parte do Dom Quixote lançada em 1614.

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