quarta-feira, 12 de março de 2008

Os economistas e a política, por Maria Rita Loureiro

“Operando com definições que pretendem ser universalmente válidas, freqüentemente se tem logrado fazer com que um princípio político implícito
pareça logicamente ‘correto’ (...) O perpétuo jogo de esconde-esconde em Economia consiste em esconder a norma no conceito”
Gunnar Myrdal, Aspectos políticos da teoria econômica. Nova Cultural, São Paulo, 1997: 212. Prêmio Nobel de Economia, em 1974.


A Economia nasceu como Economia Política. Isso não é difícil de ser entendido. Quando Adam Smith escreveu A Riqueza das Nações era impensável explicar a acumulação de riqueza considerando “externalidade” o poder do Estado-Nação. Hoje, as atividades econômicas, como nos primórdios do capitalismo, são igualmente indissociáveis das relações de poder e da autoridade estatal. Mesmo em uma hipotética economia totalmente desregulamentada, a moeda com a qual se transacionam bens ou serviços supõe necessariamente a existência de poder político que lhe dê garantia. A própria relação de troca exige que o poder do Estado “proteja” a propriedade privada dos objetos transacionados. Embora qualquer economista reconheça isso, os estudantes de economia são privados de formação política. Basta olhar para o conjunto de disciplinas obrigatórias e eletivas de nossos cursos de graduação ou pós-graduação.
A ausência de conhecimento sobre teoria e análise política se agrava se considerarmos que parte significativa das alternativas profissionais para os economistas no Brasil, como em outros países, é encontrada em organismos governamentais ou em áreas direta ou indiretamente relacionadas a eles.

Como se sabe, os atuais programas dos cursos de Economia refletem escolhas feitas há mais de cem anos, quando a escola marginalista conseguiu gradualmente impor-se e desaguar no que atualmente constitui o mainstream da teoria econômica. Na medida em que o paradigma neoclássico supõe um homo oeconomicus em abstrato que orienta sua ação – em todo lugar e em toda época – pelo cálculo racional, maximizador de sua utilidade, o raciocínio hipotético dedutivo (com a formalização de modelos
matemáticos) torna-se o método predominante na disciplina que passa a se chamar Ciência Econômica (em inglês, Economics). Não é surpreendente, portanto, que cerca de 30% do currículo obrigatório do curso de Economia no Brasil seja ocupado por disciplinas instrumentais, sobrando pouco espaço para reflexões aprofundadas sobre a política.

O argumento que procuro sustentar aqui é que a falta de formação em ciência política dentro do curso de Economia tem efeitos perversos. Dentre eles, destaco dois bastante inter-relacionados.

O primeiro refere-se à reprodução entre os economistas de preconceito bastante difundido em nossa sociedade com relação à política. De modo geral, o economista vê a política como espaço de irracionalidade e fonte de distorções da racionalidade econômica, esta sim capaz de gerar boas soluções para a sociedade. Isso, evidentemente, se protegida da “politização absurda das decisões governamentais”. São expressivos dois depoimentos feitos nos anos 1990, quando a luta para conter a prolongada hiperinflação no país ampliou a presença de economistas no governo:

“Esse plano (Cruzado), bem pensado e elaborado por um grupo de economistas de primeira qualidade, foi em seguida mal administrado, por uma série de motivos – essencialmente pelo caráter populista, nacional desenvolvimentista, do PMDB e do governo Sarney – e afinal fracassou retumbantemente”.
Bresser Pereira, “Problematizando uma experiência de governo: Contra a corrente no Ministério da Fazenda”, Revista Brasileira de C. Sociais, no. 19, 1992, p. 5


“Numa sociedade como a brasileira - onde a convivência prolongada com a inflação e a politização absurda das decisões governamentais geraram distorções arraigadas e aberrantes na economia do país - a situação do economista que porventura ocupe cargos executivos no primeiro escalão do governo transformou-se num pesadelo... Refiro-me ao que deve ser a sensação aterradora de frustração e impotência diante de uma dupla realidade: a absurda falta e/ou inoperância dos instrumentos para a implementação de políticas econômicas, de um lado, e as inacreditáveis agressões à lógica e ao bom-senso que marcam o corpo-a-corpo no cotidiano da vida pública brasileira de outro... A raiz do problema está no fato de que, de alguns anos para cá no Brasil, a ocupação e o exercício de funções executivas na área econômica tornaram-se um tormento virtualmente insuportável para qualquer cidadão - economista ou não - que tenha um compromisso mais firme com padrões mínimos de racionalidade econômica e, que ao mesmo tempo não alimente ambições pessoais de poder”Giannetti da Fonseca, Folha de São Paulo, 4.6.1995, Caderno 2, p.5, grifos meus

Esses depoimentos revelam porque os economistas não só reproduzem a visão que prevalece na sociedade brasileira, mas também porque abrem mão de analisar as razões do desprezo pela política e, sobretudo, os impactos que essa atitude pode trazer
para a ordem democrática. Ao contrário do que Myrdal afirma na epígrafe deste texto, tais formulações supõem a separação entre economia e política e, mais ainda, a superioridade da racionalidade econômica sobre a lógica política.

Considerando que os economistas são formadores de opinião, debatendo na mídia não só teorias econômicas, mas outros temas da agenda pública do país, esta visão negativa da política tem outro efeito perverso. Ela leva a crer que a melhor solução para os problemas coletivos deriva apenas da racionalidade técnica e não do debate político, como faz crer a ideologia tecnocrática (que costuma predominar em regimes autoritários, como ocorreu no Brasil durante a ditadura militar); ou, como afirma a visão liberal, que a solução ótima só poderá vir do mercado, já que os governos ou os políticos estão sempre preocupados com sua reeleição, em atender os interesses de suas clientelas e as demandas imediatistas de seu eleitorado, distorcendo a boa lógica econômica e, assim, frustrando os economistas. Em outras palavras, tanto a visão tecnocrática como a liberal desacreditam da política e, em decorrência, da democracia, vista como antagônica à eficiência econômica.

Em suma, sem compreender o papel da Política na vida coletiva não poderemos formar adequadamente economistas. Sem compreender que a solução para as mazelas da política e, inclusive do mercado, é mais política e não a eliminação da política (como se isso fosse possível!), não poderemos formar economistas capazes de assumir as responsabilidades que exercem no mundo contemporâneo como importantes interlocutores públicos. É fundamental que compreendam que o Estado é o único recurso (o deus mortal, como disse Hobbes) que pode fazer frente ao poder de grupos privados poderosos e garantir os direitos dos demais (mesmo que de forma muito imperfeita e frequentemente passível de corrupção). E que o controle sobre este deus mortal só poderá vir da ação política. Não há outra solução, mesmo que esta também seja sempre imperfeita e seus atores sujeitos à corrupção. Ou seja, eleições, partidos, representantes e algumas novas formas que começam a ser inventadas para que a sociedade organizada fiscalize e controle seus guardiões são os únicos remédios que temos para melhorar nossa vida coletiva. Aliás, em defesa da política, é fundamental
relembrar as palavras do liberal Max Weber, professor de Economia na Alemanha na virada do século XIX para o XX: “Fora da política não há salvação para a vocação eminentemente autoritária do Estado”. E em defesa da democracia, as palavras do estadista inglês Winston Churchill merecem também ser relembradas: “A democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos”.


MARIA RITA LOUREIRO é professora Livre Docente do Departamento de Economia da FEA-USP. Autora de, entre outros, Os Economistas no Governo (1997) pela editora FGV. Tem Pós-Doutorado pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (França) e pela New York University (EUA).

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